Carta ao Thales



Marcus Vinicius Batista

Pensei por dois dias se deveria te escrever. Decidi preparar essa carta porque percebi que me identifico com você. Percebi pela primeira vez na noite de domingo, quando me perguntei como você estaria naquele momento. Como você ficaria pelos dias seguintes? Como seria tocar a vida com dois filhos pequenos para orientar, para cuidar, para explicar a ausência do Paulo?

Ainda que também tenha dois filhos e já tenha vivido lutos na vida, jamais passou pela minha cabeça dizer qualquer coisa sobre o que você deve fazer. Não existem saídas coletivas, soluções mágicas, fórmulas libertadoras. Nenhum remédio com doses programadas, exceto o amor. E este sentimento, acredito, ocupou você, construído de maneira única com o Paulo, cultivado de maneira única com seus filhos e pessoas próximas. Único, intransferível, imensurável.

Identificar-me com você não me dá o direito de imaginar o que sente. Muito menos comparar com quaisquer outras situações. Ou dizer que está tudo bem. Ou que ele descansou. Nenhuma dessas frases para em pé. Nada do que for dito acalma o que corrói feito ácido na pele. Mas a presença e calor humanos se fazem essenciais. Nada precisa ser dito. Abraços, silêncios conjuntos, choros testemunhados, o estar perto que não substitui a falta, mas permite se agarrar no tronco de árvore mais próximo em meio ao dilúvio.

Não consigo imaginar também como foi atravessar esses dois últimos meses sendo médico. A ideia de cura reside e se infla dentro da natureza do cuidar médico. Só consigo pensar na sensação de impotência diante de uma doença que poderia ter sido evitada pelo mundo lá fora. As recomendações que seu próprio marido deu em público, ciente de seu papel como artista, e que os irresponsáveis fizeram apenas encher os ouvidos de algodão.

Penso na tristeza que te devasta, mas também reflito sobre o que Paulo representou. Não se trata da obra dele, que está posta e será revista como ato automático de saudade e que sobreviverá pela qualidade que embala os clássicos. Paulo ocupava os espaços, invadia os cenários, aquele sujeito que envolvia até os mais tímidos e arrancava sorrisos dos carrancudos. Paulo era humorista, não estava. Até para dar bronca, o recado soava divertido enquanto sério. A natureza dos palhaços, que sorriem até quando sofrem.

Paulo sempre estará dentro da vida de vocês três, para dizer o óbvio. E nada mais lindo do que a maravilha das obviedades. Ele seguirá saltitante na memória, acelerado nas histórias saudosas, afetuoso nas noites de tristeza (para muitos, como eu, as manhãs são mais dilacerantes), acolhedor nos pequenos detalhes do cotidiano, vivo em todos objetos que forjaram o espaço de vocês.

Paulo virou um símbolo da luta contra a truculência. Era antes de adoecer, mas ganhou contornos maiores que só a passagem da morte dá, mais admiráveis e involuntários. Nada controlará esse estouro de diversos sentimentos. A tal da comoção pública. Esses sentimentos vão durar o que for preciso, vão modificar quem está interessando em ouvir, não vão alcançar quem ignora a vida ou o final dela.

Paulo está bem. O lugar depende da crença que te acompanha. Sei que estará em serenidade, ciente de que você não tem obrigação nenhuma de parecer sorridente para o mundo. O choro virá e é bom que seja assim. Como ouvi de um pajé, o processo de cura passa por liberar a água salgada que está em nós.

O luto virá quando a sua porta abrir para escoar a dor, Thales. Quando? Onde? De que jeito? Não há resposta. Viva este sentimento, é o que posso te escrever. Viva-o! Barganhe com a transcendência se estiver frágil. Deixe a raiva escorrer pelo poros. Negue quando estiver emputecido com o mundo ao redor. Todas essas manifestações renovam o amor.

Paulo sempre estará por perto. Está nos olhos e nos trejeitos do dois meninos, nos movimentos da mãe dele, fonte de narrativas de identificação de multidões. Está na história de amor exemplar que vocês ergueram e levaram juntos.

Peço desculpas se fui invasivo de alguma forma. Escrever também é falar de si mesmo. Escrever me aliviou diante da possibilidade de perder alguém para esta doença. Acompanhar um pouco o seu caminho me leva a olhar novamente para meus filhos. E olhar com a alma nos pequenos (grandes) momentos que ainda serão vividos com eles. 

 Thales, ele te levou com você. E você o manteve aqui, ao lado. Entre vocês, dois moleques. E outros para apararem quando a corda chacoalhar. Não se furte de se pendurar nela. Um abraço fraterno!

Comentários

  1. Sempre sensível e profundo... obrigada, suas palavras sempre me são pertinentes.
    Abraço professor!

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    1. Natália, muito obrigado pela generosidade. Fico contente que tenha gostado. Obrigado.

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  2. Sempre sensível e profundo... obrigada, suas palavras sempre me são pertinentes.
    Abraço professor!

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  3. Falar sobre a morte é tarefa difícil e você o faz de uma forma muito responsável e completa. Adorei o texto.

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  4. Preciso, profundo e inteligente. Como sempre você escrevendo com a alma.

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  5. Preciso, profundo e inteligente. Como sempre você escrevendo com a alma.

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  6. Sensível e respeitoso . Belo texto como sempre .

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