Calafiori e o sanduíche de quinta-feira
Marcus Vinicius Batista
A última conversa aconteceu há três dias. Ele me convidou para um café que, na verdade, viraria lanche às cinco da tarde da próxima quinta-feira. Um sanduíche de queijo branco, provavelmente acompanhado por presunto. Como bebida, suco de uva integral.
Ele me avisou que me daria alguns livros, o que sempre acontecia em nossos encontros, na casa dele. Da última vez, ele me deu Joyland, de Stephen King. Preferia os contos do escritor norte-americano aos romances. “Ele, às vezes, escreve demais.” Pegou emprestado um romance policial, que pertencia a um amigo comum, o André Rittes.
Aprendi com Calafiori a ideia de que livros devem circular e que só se mantém vivos se passarem de mão em mão. Livros, também, salvam as contas em meses muito apertados. Ele me reapresentou o Américo, um colega de futebol e hoje comerciante de livros usados.
Encontrei Márcio Calafiori há cerca de um mês. Ele estava cerca de 20 quilos mais magro, disciplinado com a diabetes e preocupado com as sessões de hemodiálise. Colocaria uma fístula no braço direito, dois dias depois. Pelas razões colocadas acima mais a minha mudança no estilo de vida também por causa da diabetes, a saúde ocupou muito tempo da nossa conversa.
Como eu havia feito estágio numa clínica de Nefrologia, acompanhando pacientes em hemodiálise, a terminologia parecia integrar um papo cotidiano. Ele me falava da necessidade de transplante, dos remédios, discutíamos custos, dietas, horário para a aplicação de insulina e nossos excessos do passado.
Inevitavelmente, desviamos o assunto e fomos para a literatura e para o jornalismo, temas de sempre que nos levaram à sala de aula por cinco anos na Universidade Santa Cecília, até que Márcio se aposentou. A universidade, onde nos conhecemos no começo da década passada, era pauta antes dos almoços, agora dos lanches de final de tarde. Tivemos que trocar o macarrão italiano legítimo e a linguiça de primeira com molho de tomate importado pelo sanduíche natural. Márcio fazia macarrão demais e me obrigava a levar quase meio pacote para casa. Presente para Beth, ele dizia.
Márcio Calafiori foi um dos melhores professores e jornalistas que conheci. Um dos três melhores textos, sem dúvida. Era um jornalista à moda antiga, daqueles que – até na semana passada – andam com um bloquinho de anotações. As pequenas histórias, os grandes diálogos da rua agora povoavam suas postagens no Facebook. Ou invadiam seus contos, em fase de preparação, sonhando com um livro em breve.
Como jornalista do século passado, Márcio era um boêmio, um homem de excessos noturnos. Cansei de acompanhá-lo no restaurante Cook’s, no Supercentro Boqueirão, depois que dávamos as aulas de Leitura e Produção de Textos. Ele, uma porção e uma cerveja. Eu, um misto quente e uma, duas latas de Pepsi. Conversávamos por uma hora e meia, duas horas, até que ele me convencia a pegar carona de táxi. “Márcio, eu moro a um quilômetro. Vou a pé.” “Malandro, vamos embora”, era a resposta.
Márcio nunca destratava ninguém, mas era de uma honestidade intelectual rigorosa. Não poupava palavras para expor críticas e propor soluções. Aproximava o rosto da tela do computador e trabalhava um texto palavra por palavra. Um ourives de lentes aumentadas diante da joia em lapidação. Ou da eminência de descobrir que se tratava de uma pedra sem valor.
No nosso último encontro, dei a ele meu último livro de presente. Márcio não ia aos lançamentos. Não gostava do que chamava de Tertúlias, uma piada que nos divertia sempre. Márcio teceu elogios calorosos à edição feita por Beth e à ilustrações do DaCosta. “Ele está cada vez melhor. Gênio.” Não sei Calafiori leu meus textos e diria suas opiniões na próxima quinta-feira. Levarei essa curiosidade comigo. Por outro lado, ele gostou dos textos iniciais do blog que abriga essa homenagem. A opinião verdadeira dele era um presente.
Márcio estava muito contente. Estava casado com Regina, a “companheira para o final da vida”, nas palavras dele. Fez questão de me contar como haviam se conhecido – história que se esquecera de relatar em outras ocasiões – e da gafe que cometera no primeiro dia. Contava a história, colocava a mão na barriga e gargalhava jogando a cabeça para trás, como sempre fazia, seguido de um “Malandroooo!”. A satisfação também vinha do livro do pai, recém-publicado e editado por Beth.
Combinamos, diante das nossas semelhanças em proporções diferentes de diabéticos, de nos encontrarmos todos os meses. Colocar a conversa em dia. Falar sobre Jornalismo e Literatura. Trocar livros. Relembrar histórias juntos. Dividir nossos escritos.
Seria na próxima quinta-feira, às 17 horas. Um lanche, duas horas de conversa, depois eu partiria para dar aula. Na última vez, fez questão de me levar até a esquina para prolongar a conversa. Nos despedimos com um abraço fraterno.
Na quinta-feira, Márcio, neste horário, farei um lanche em sua homenagem. Muito obrigado pela amizade. Desculpe-me pelas lágrimas. Um abraço, Malandro!
Puxa que triste a perda desse grande mestre e pessoa do bem /só tenho boas lembranças do profe Calafiore / Parabéns pela homenagem Marcus forte abraço
ResponderExcluirQue linda homenagem. É difícil chamar o Calafa de professor, ele era um mestre, com uma sensibilidade refinada e única. Ontem passei de carro com uns amigos na frente do Cook's e um deles me perguntou se eu frequentava o local na época da faculdade.Fiz questão de lembrar da única vez que fui arrastado para lá, quando o Calafa bancou a cervejinha da galera. Mestre!
ResponderExcluirLinda homenagem!!!!!
ResponderExcluirOi Marcão. Muito triste a perda do Calafa. Eu sempre que conseguia escapar do aquário, assistia as aulas da noite porque de manhã ele não fazia dupla com você. Apesar de não ter sido meu professor ele era um amorzinho e até me deu um livro. Poemas de Mario Quintana. Um abraço e se cuide. Beijo pra Beth.
ResponderExcluirO previlegio vou nosso de ter ele em nosso cotidiano, seus ensinamentos... Lembro com saudade e felicidade porque ele era demais. E doeu.
ResponderExcluirO velho 'malandro' agora descansa, mas deixou um belo legado por aqui. Grande figura e parabéns pelo texto.
ResponderExcluirMarcio foi meu colega de faculdade. Estou muito sentifa pois so soube agira. Mas sei que esta em paz, era um cara do bem. Saudades das conversas, das risadas entre ele, Edu Cavalcanti. Muita luz.
ResponderExcluirHaja poesia para falar de um amigo. Você deixa nossa boca com vontade de sanduíche de queijo branco e nosso coração com vontade de uma amizade como esta
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