Os jovens não deveriam morrer (Crônicas de uma epidemia # 53)



Marcus Vinicius Batista

Priscila tinha 35 anos. Sonhos demais, ilusões para cultivar e depois desfazer, amores por viver e talvez descartar, amizades por renovar e construir, vida profissional para carregar e pelejar, problemas para lidar e protelar...Um horizonte a seguir feito todas as pessoas em condições equilibradas de temperatura, pressão e meio ambiente.

Como todo jovem, ela se foi antes da hora, na opinião de qualquer pessoa de bom senso. Como cidadã, ela não deveria morrer por causa de um vírus que aglomera gente na porta do lugar onde se chega depois de morrer, independentemente da fé. A casa tá cheia. Gente que nega, gente que luta, gente que cuida de gente, gente que se descuida, gente que causa surpresa porque deveria estar por perto, gente que não surpreende na estupidez humana.

A morte não é um destino dos velhos. Longe disso. A morte é para todos nós, precisamos vê-la, conversar sobre ela, senti-la ainda que seja pela dor. A questão é que, para um jovem, a morte não permite a ele morrer com dignidade. A morte o visita sem aviso prévio, sem alertar de que muito se fez porque se trata de uma inverdade insatisfatória. Um ato de desamor, pois, - no fundo – a morte sempre nos entrega a escolha de amar e ser amado uma última vez. Quando leva um jovem, ela nos tira essa hipótese pela choque, pela incredulidade da perda.

A dignidade que deveria estar na finitude se materializa na consciência de que tudo foi feito para encontrar a morte sem sofrimentos agudos, o que inclui – por exemplo – a possibilidade de acerto de contas, a chance de se fechar para balanço, a oportunidade de se despedir de quem teve importância em vida, seja alguém de muitos anos, seja alguém que não se vê há muitos anos, seja alguém que cuida de nós desde ontem ou da semana passada.

O envelhecimento – e que fique cristalino que não me refiro à idade biológica – nos traz um certo grau de maturidade, capaz de nos abrir as portas para um diálogo com a morte. Isso envolve, em essência, o conceito de finitude. Essa conversa se dá na percepção de que, ao falar com ela, falamos sobre nossa vida, sobre os caminhos percorridos, sobre as escolhas, sobre os sacrifícios, sobre os acertos e erros.

Um jovem não vai colocar essa pauta em sua mesa biográfica. Até porque não deveria, tamanha a ânsia de viver que preenche todos os espaços e tempos. Um jovem se sente invencível, e essa invencibilidade o mantém aceso – e até certo ponto protegido – das perdas, dos desvios, dos olhares culturais de que a morte não pertence ao seu universo. Pode rodeá-lo ou tangenciá-lo, jamais atingi-lo. Por um lado, me parece um pensamento plausível, diante das probabilidades que a vida impõe e/ou oferece. Por outro, pode nos esmagar com a surpresa de quem se vai sem a mínima opção de preparar para o impacto sobre quem permanece.

Um jovem não deveria morrer porque ele cutuca nossas bases culturais, sustentadas pelas crenças de que existe uma ordem natural das coisas. Entre pais e filhos, entre velhos e mais novos. Uma crença que se basta, que não depende de referências científicas e, assim, se perpetua e, ao se perpetuar, nos deixa frágeis quando a morte se senta ao lado.

A pandemia exacerbou muitos comportamentos, extinguiu alguns, criou novas posturas. Mas, diante da morte apressada, o vírus nos amaldiçoou com o luto que beira o impossível. Sofrer por quem que, até agora há pouco, poderia entrar em luto (e aprender com ele), e não se transformar em alvo e ausência.

Comentários

  1. Um raio-x dessa perda que nos choca a todos. Priscila merece todas as homenagens. E, de homenagem a homenagem, devolvemos a ela os anos de vida que o vírus sorrateiramente a impediu de desfrutar. Parabéns, Marcus Vinicius.

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  2. Verdadeiro e catártico, como sempre!

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  3. Vivemos um momento de muitas tristezas...

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