O professor foi viajar
![]() |
Henrique e Myrian - 41 anos de casamento |
Marcus Vinicius Batista
Nunca vi o professor deixar de sorrir. Assim foi no último sábado, quando pude visita-lo antes da viagem. Ele não me esperava em seu quarto. Ficou genuinamente surpreso quando me viu. Sorriu, abriu os braços e me cumprimentou como se eu fosse a atração do dia. Ele tinha essa (entre outras habilidades): tornava seu interlocutor o centro das atenções, mesmo quando todos na sala tinham consciência de que o protagonista era o próprio professor.
Nunca o chamei diretamente de professor. Pensava nele deste modo. Era a forma de respeitá-lo, concedendo a ele – no meu mundo - o título de fato e de direito, não por diploma ou outras honrarias protocolares. Ele não era um daqueles professores autoritários ou espalhafatosos ou autoritários e espalhafatosos.
Henrique era um professor de linhagem oriental. Quase um clichê de filmes de artes marciais. Um Sr. Myagi. Só não o era porque, por exemplo, não falava por metáforas, parábolas ou histórias edificantes. Era alternativo na maneira de ensinar, porém direto nas ações.
Henrique era discreto, daqueles sujeitos de canto de sala a observar. Ensinava seus aprendizes – filhos, netos, amigos, filhos dos amigos, amigos dos amigos, quem o cercasse, quem aparecesse como agregado numa festa de família – sem que o outro percebesse que estava numa aula. Aliás, creio eu, nem o próprio Henrique percebia. Didático, sem ser professoral.
Ele também me parecia mais um oriental na hora da entrada e da saída. Sabia chegar sem fogos de artifício e sair à francesa como poucos. Ele o fazia para não incomodar, certamente.
Henrique era assim: não queria incomodar. Não falava alto, não gargalhava, jamais me interrompeu quando conversávamos, seus pontos de vista ficavam demarcados sem conflito. Não reclamava de dor quando muitos cairiam de joelhos. Sorria quando se sentia dolorido. Apenas observava quando o Mal o corroía antes de viajar.
Se sentia medo, sabia escondê-lo. Só o vi balançar uma vez, por segundos, antes de me abraçar na avenida Conselheiro Nébias. E olha que, diante da notícia recebida 15 minutos antes, muitos arrancariam os cabelos ou esqueceriam o próprio nome.
Nem na pista de dança, nas festas promovidas pela esposa Myrian (olha, Myrian, não tens ideia de como essas festas melhoram meu ânimo e a crença nas pessoas!), Henrique não se incomodava com a luz sedutora do salão. Os movimentos na pista eram leves, quase silenciosos, de modo que só notávamos o balé em vias de se encerrar. Ou quando ele se sentava perto de mim para mais uma cerveja.
No último sábado, confesso que quase não o encontrei antes da viagem. Esperei por uma hora para subir na última das hospedarias que o abrigaram. Poderia ter telefonado para conter minha irritação estúpida, mas recusar a chance do telefonema me colocou no meu devido lugar. Esperasse o que fosse necessário, quem ganharia com a conversa seria eu.
Dei uma volta, almocei e retornei. Meu livro se agarrou nas suas mãos e a promessa de leitura veio como a palavra carinhosa. Acompanhamos a trajetória de um professor que respondia ao jogo de perguntas do Luciano Huck. Ele me comparou ao concorrente. Me perguntou quantos livros eu lia por semana. No final, me convenceu e assistimos a um capítulo da novela Flor do Caribe. Para mim, o único. Para ele, a diversidade em formato de TV ou de conversa. Assim como foi o sorvete na Itanhaém às vésperas do Natal do ano passado. Sai de uma solidão que ardia de saudades de Mari, Vini e Beth.
Nos últimos dez dias, soube que muitos te procuraram. Era justa a honraria, o mínimo diante das circunstâncias, o momento da última impressão, a que realmente permanece. Tão justo você foi – seu irmão lembrou com sabedoria hoje à tarde diante de dezenas – que esperou a hora certa para ouvir o que seu filho, a última palavra, tinha a te dizer. A despedida em seu sentido amplo, irrestrito, sofrido e amoroso.
Hoje à tarde, muitos estavam na estação de trem para acenar antes do embarque. Gente que reencontrei, gente que renovei meu apreço, gente que pude dar um abraço como nunca o fiz, gente com quem pude conversar, falar de você e, principalmente, ouvir o que tinham a dizer. Sua nora, Priscilla, conseguiu - no impulso verdadeiro da contracapa da sua biografia - sintetizar o que todos ali, à beira da linha férrea, tinham encalacrado na garganta: amor e gratidão. Muito obrigado!
Depois que você se acomodou no vagão particular e o trem começou a se movimentar, eu pude ouvir de uma de suas filhas. “Ele disse que leria o seu livro.” Eu só pude responder: “Ele já leu, tenho certeza.”
Ah, e não se preocupe: no seu aniversário, só lembranças alegres e histórias sobre você. Os sorrisos podem ser discretos pela ausência e acompanhados de águas nos olhos, mas serão compatíveis com o aniversariante. Boa viagem, mestre!
Obrigada por tão preciso texto .🙏🏻
ResponderExcluirHomenagem linda 🙌🙏🤗
ResponderExcluirQue lindo,que pena que não pude conhecê-lo,só ouvi falar,e ver nas redes sociais, daquela que sempre estava plena ao seu lado,sia esposa Myrian,pessoas especiais,acredito Deus,que ai do outro lado,só tem lugar pra pessoas assim,pessoas que nos engrandece apenas d e ouvir falar.
ResponderExcluirBonito de ler tdo isso,não o conheci,apenas ouvi falar,e via sempre com sua esposa nas redes sociais, mas sinto muita paz ao ler as mensagens de carinho,Deus conforte a família.
ResponderExcluirVá na paz
ResponderExcluirQue louco, ficou a vontade de abraçar uma pessoa que eu nem conhecia...
ResponderExcluirAdorei.
ResponderExcluir