A beleza da morte
“A Partida” é um daqueles filmes tão belos, capazes de tratar temas dolorosos com delicadeza, que quase nos impede de começar um texto sobre ele. É o tipo de história que, além de arrancar uma lágrima de melancolia e admiração, nos deixa paralisado diante dos letreiros que sobem na tela. O tempo de maturação ganha tom primordial para nos fazer compreender onde e como o filme nos atingiu.
“A Partida” é uma produção japonesa, vencedora do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, que fala sobre a morte. É a história de Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki), violoncelista que perde o emprego após o fechamento de uma orquestra em Tóquio. Ele desiste da vida como músico e retorna para a cidade natal, no interior, ao lado da esposa.
À procura de novo trabalho, responde a um anúncio de jornal da empresa NK agents, que “ajuda a pessoas a partir”. Daigo acredita ser uma agência de viagens, mas descobre que teria que trabalhar como “preparador de corpos”. Um “nokanshi”.
Preparar corpos significa arrumar (embelezar) o cadáver por meio de um ritual antes da cremação. O salário era vantajoso e o trabalho, sem desgaste físico. Daigo aceita a oferta, mas esconde a atividade da esposa. Depois, tem que enfrentar o preconceito dela e de outros moradores da cidade.
O filme nos ensina como a morte está repleta de simplicidade. Para absorver o singelo, o ritual de luto. É óbvio que tememos a morte. É ingênuo como fugimos dela. É infantil como a olhamos de costas quando perdemos alguém próximo.
A morte, hoje, também entrou no circuito de velocidade da vida humana. Muitos acreditam que a vida com o pé no acelerador se estende ao momento da perda. Perdemos, em parte, o poder do luto. E pagamos um preço elevado por acreditar que se tornou desnecessário. Jogamos as cinzas de nós mesmos embaixo do tapete como se fosse possível desprezar a dor que nos acompanha e grita assim que enxergamos o outro naquilo que deixou.
Recentemente, fui a um velório. Morrera o avô de um amigo. Entre o velório e a cremação, somente três horas. Ele havia falecido pela manhã. Às cinco da tarde, havia sido cremado. O ritual parecia uma variação de restaurante fast-food. Todas as etapas cumpridas rapidamente, sem o tom da pessoalidade. Nem placa de identificação havia. Poderia ser qualquer um. Para a empresa que conduzia o funeral, olho no relógio. Nada fora do cronograma. Outro corpo viria.
È claro que, numa situação como essa, não se pode pensar em tudo. O distanciamento daquela hora nos leva a perceber que o modelo atual nos empurra para a ilusão da fuga, impossível de sentir na hora em que você está envolvido. Sepultar alguém não tira aquilo que representou, aquilo que foi, independentemente do mérito.
O que me preocupa é a sensação contínua de que um sepultamento veloz leva o sofrimento na mesma velocidade. O luto precisa ocorrer, para que os sentimentos sejam encaixados nos devidos lugares. O tempo é variável, certamente superior às poucas horas de um funeral cru como as paredes do velório. Transformar a morte em um show com desfecho previsível e fugaz provoca danos irreparáveis nos que ficam, incapazes de promover os tais acertos com que se foi.
Dirigido por Yojiro Takita, “A Partida” consegue nos mostrar como os rituais de morte podem auxiliar na construção de uma vida mais serena aos que permanecem. No trabalho de Daigo e seu chefe, a missão fundamental é, com precisão e leveza, deixar o morto belíssimo no seu ponto de despedida. A última imagem seria a destinada às marcas na memória.
O personagem principal, ao longo da história, muda a relação com a morte. Ele parte do nojo e da repulsa. Ao chegar em casa, após o primeiro serviço, sofre náuseas ao ver a mulher preparar um frango para o jantar. Depois, percebe o trabalho como uma necessidade; alguém deve fazê-lo. E alcança o sublime, ao entender que seu trabalho carrega em si uma série de simbolismos, que marcam os sentimentos entre o morto e as pessoas próximas.
O grande mérito do filme é apostar na proposta de que a morte está além do conceito de finitude. Ou que a vida é curta demais e deve ser vivida com intensidade. “A Partida” escapa destes clichês quando aborda um tema ainda muito caro e, por vezes, tabu para nós.
Por trás do tema principal, a relação conflituosa entre pais e filhos, resolvida no ponto de passagem. Daigo foi abandonado pelo pai quando tinha seis anos. Apagou o rosto dele da memória. Mas reproduz princípios que ele o ensinou.
Além disso, o protagonista e a esposa se afeiçoam a uma senhora proprietária da casa tradicional de banhos da cidade. Ela vive em choque com o filho, que deseja vender o lugar para uma construtora.
Em ambos os casos, a morte ronda os relacionamentos. Relações que morrem em vida, por egoísmo, por vaidade, por aquilo que não se fala, mas que sempre teima em ressuscitar nas crises. A morte física é quando se pode enterrar as mágoas e as diferenças. E o ritual do preparador de corpos servirá como motor para a mudança.
“A Partida” surpreendeu ao levar o Oscar diante de concorrentes de peso, como o francês “Entre os Muros da Escola” e o israelita “Valsa com Bashir”. O prêmio abriu caminho para se conhecer um modelo de cinema, além dos filmes de terror, das animações ou dos clássicos de Akira Kurosawa.
Assisti junto com a sua mãe quando do seu lançamento. O filme é comovente e trata o assunto com dignidade e respeito. Ramos.
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