Mariângela gostava de conversar
Marcus Vinicius Batista
Quando ela me chamou pela primeira vez, eu achei que não era comigo. Começava a subir a rampa do supermercado, que atravessava cinco vezes por semana, no caminho mais curto para casa. Era hora do almoço, tinha deixado meu filho na escola e estava com pressa, repassando compromissos na cabeça.
Mariângela foi coerente. Persistente como ela mesma. Insistiu. Falou mais alto. Repetiu meu nome. Logo, passou a balançar o braço direito e gritar: “Menino! Menino! Menino!” Parei, a reconheci e esperei que ela descesse a rampa com quatro, cinco sacolas de supermercado. Foi no final do ano passado, provavelmente novembro. Foi a última vez que nos encontramos.
Mariângela Duarte era assim. Objetiva, determinada, conversadeira, tinha que dar seu recado. Logo que nos cumprimentamos, ela me surpreendeu. Perguntou do meu último livro, “O Lobo, o Urso e a Cura”. Não imaginava que soubesse dele. Não só sabia, como conhecia detalhes. Queria saber mais sobre o estado de saúde de Beth, minha esposa. Desfiou nomes de médicos em São Paulo, que poderiam ajudar no tratamento do lúpus. Mencionou duas pesquisas das quais ouvira falar em tempos recentes. Insistiu que eu procurasse uma professora-pesquisadora da USP.
Mariângela estava tão preparada que parecia ter previsto que me veria naquele dia. Ou que fizera uma pesquisa detalhada no Google nos cinco, seis segundos entre ter me visto e iniciarmos a conversa. A sede de informação se nutria dela, de forma umbilical.
O encontro seguiu como sempre, como nos últimos 20 anos, como em todas as vezes que tentei entrevistá-la. Tentei porque ela falava sobre o que desejava, emendava um tema no outro, me levava ao limite entre a pergunta e a grosseria para cortá-la e fazer um novo questionamento. Entrevista ao vivo, com tempo demarcado, era certeza de tensão. Para os dois! Era uma dança política, de respeito mútuo, em prol de causas mais importantes do que nós.
Mariângela Duarte foi uma exceção no cenário político. Uma exceção que se comprova na crítica até certo ponto forçada (diante do que vemos não chega a ser defeito) sobre o comportamento de uma figura pública que falava pelos cotovelos, quase que de maneira literal. Triste é que o comportamento dela se transforme em mérito, não apenas pela própria postura de Mariângela, que enxergava como obrigação inerente ao cargo – qualquer que fosse ele -, mas pela indecência de muitos de seus (ex)colegas.
Quando a notícia da morte de ex-deputada se espalhou, vieram – claro – os elogios e os depoimentos sobre sua biografia. A diferença é que os motivos para as homenagens foram inúmeros, seja pelo comportamento, conhecimento e relacionamento com os alunos nos tempos de professora de Literatura Brasileira, na Unisantos, seja pela vinda da Unifesp à Baixada Santista, pela instalação da FATEC em Praia Grande e assim por diante. Gente de outros partidos, adversários eleitorais também se manifestaram. Até o fogo amigo se travestiu de santo do pau oco para enaltecer a ex-companheira.
Diante de um cenário polarizado e truculento, Mariângela Duarte fará ainda mais falta. A última década foi ingrata com ela. É preciso lembrar que ela aceitou o sacrifício aos leões da mídia quando a casa que ajudou a construir estava em indecentes chamas. Alguns moradores – é bom que não se esqueça – se apequenaram pelas mesquinharias do pequeno poder, pela autopreservação institucional.
Mariângela encheu suas malas com seus princípios, engoliu a decepção e foi morar em outro lugar, talvez acreditando que o S de socialismo ainda fosse possível no mundo pragmático e vil. Tornou-se uma andorinha solitária que tentava arrastar bons ventos em meio à tempestade. Preferiu aterrissar e procurar outros caminhos.
Mariângela soube se retirar quando a política não a via como alguém que pudesse atender a interesses duvidosos. Não deixou de fazer política, não deixou de exalar a cidadania de uma perspectiva progressista. Não consigo imaginar o tamanho da mágoa que os políticos (e muitos eleitores) provocaram nela quando a podaram de fazer mais, com um mandato em mãos.
Mariângela me ensinou – involuntariamente – a escutar mais como jornalista, a pensar melhor nas perguntas, a prestar atenção nas respostas, nas divagações, nas repetições. Ela contribuiu para o entendimento – lá atrás quando eu comecei – que precisava sempre me preparar para sobreviver com dignidade a uma conversa pública.
Uma conversa que Mariângela certamente gostava, não por mim, mas pelo desafio do debate. Uma conversa em que os braços ganhavam vida diante do microfone ou quando as sacolas de supermercado eram postas no chão para libertá-la na retórica. As conversas com ela sempre foram diferentes, inclusive nos ônibus, que incluíam os passageiros de ocasião.
Gostava de conversar (ou tentar entrevistar) Mariângela Duarte. Até porque ela sempre tinha algo a dizer. A me convencer. E a realizar.
Pessoa ímpar!
ResponderExcluirMariângela Duarte foi um exemplo de luta e resistência tão bem vindos atualmente. Nunca esqueço do apoio total e irrestrito que deu aos bancários do Banespa na luta contra a privatização do banco (1994-2000). Ela foi parceira incansável até o final desse movimento. Esteve presente em minha vida de várias formas, para além da política partidária. Nunca vou esquecer da sua mão em meu ombro na missa de sétimo dia da minha irmã. Não soube da morte, muito rápida, mas foi se solidarizar comigo e minha família! Sempre presente!!!
ResponderExcluirMarcão, texto belíssimo, como usual em você. Homenagem que certamente faria Mariângela Duarte ficar ruborizada. Quem não a conheceu, perdeu uma chance ímpar nesta vida. Quem teve esse privilégio...ahhh...levará Mariângela Duarte na memória para sempre. Mariângela foi DIGNA. Mariângela é DIGNA. Mariângela será sempre DIGNA. Abraços, meu amigo.
ResponderExcluirMariângela tinha esse dom particular de prestar atenção (de verdade!) nas pessoas...
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