Até o segundo tempo, Pica-Pau
Marcus Vinicius Batista
O que dizer quando você descobre, feito soco no queixo, que um amigo seu morreu? O que pensar sobre a surpresa, a mensagem que rasga qualquer dia, qualquer semana, senão chorar como criança? O que escrever quando se sabe que quaisquer palavras serão insuficientes para homenagear ou dar significado para uma relação de amizade que só o futebol consegue construir?
Marcio Andrade, o Pica-Pau, como era conhecido desde moleque, foi um amigo que o futebol me presenteou depois de velho. Diria veterano, no linguajar dos campos de society, mais adequado em tamanho e velocidade para nossas idades.
Ficamos amigos com quase 40 anos. Antes, muito tempo antes, fomos adversários. E eu o temia. Temia pelos mesmos motivos até a última partida que jogamos juntos. E me sentia seguro em jogar com ele pelas mesmas razões e qualidades.
Pica-Pau foi um dos sujeitos mais respeitosos que o futebol me permitiu conhecer. Raras vezes o vi nervoso a ponto de erguer a voz, xingar adversários, ser violento. Em muitas ocasiões, eu testemunhei – e passei a respeitá-lo ainda mais – reconhecer que havia jogado mal, se desculpar de uma falha durante o jogo, de se avaliar como abaixo das expectativas, sem terceirizar culpa, sem moralismos futebolísticos, sem apontar o dedo.
Olha que, de vez em quando, ele “resolvia” jogar no limite da estranheza de identidade, à beira do irreconhecível. Talvez fosse para compensar tamanha regularidade. E não levava mágoa para casa. Qualquer tristeza falecia na porta do vestiário, como todo jogador de fato e de direito aprendeu.
Ele reclamava durante uma partida como qualquer outra pessoa, mas não perdia a linha. Jogava de maneira simples, assim como era no trato cotidiano, nas resenhas sobre futebol, nos papos sobre a família e o passado.
Eu o conheci, aliás, num passado distante, no século 20. Na adolescência, fomos adversários. Ele, pelo 2004. Eu, pelo Vasco e Saldanha, todos clubes de Santos. Ele jogava numa espécie de seleção regional, com caras excelentes em todas as posições. E era temido; particularmente, por este goleiro.
Pica-Pau era objetivo, sem grandes firulas, jogava pelo time e pelo gol. Tinha um chute forte e fazia com que a bola se apaixonasse pela gaveta das traves adversárias. A questão não era se acertaria o ângulo, mas quando o faria. Um jogador tático, diriam os chatos.
Pica-Pau se tornou jogador profissional de futsal. Nada mais coerente com quem tinha essas características e jogava em nível elevado. Jogou até os 27 anos como atleta. A mentalidade ficou até a última partida.
Tenho orgulho de dizer – assim como muitos colegas de futebol de quinta – que nos aproximamos por causa desta turma de society, mais ou menos todos na mesma faixa etária, com muitas intersecções nas biografias.
Ali, primeiro no campo do Boca Juniors, atrás do Colégio do Carmo, depois no Brasil Futebol Clube, ganhei um amigo. O medo permaneceu e se renovava a cada vez que ele avançava com a bola dominada além do meio-campo. O chute aconteceria. O mesmo dilema: quando ele me permitiria defender ou quando a bola acertaria o ângulo? Ô cara pra gostar de gol bonito. Ô cara para chutar a bola longe, se a calibragem estivesse fora do padrão.
Ele seguia com o jeito de futsal. Estava ali no movimento de corpo, no carregar a bola, nos passes, nas rotações, nos chutes, no trabalho como coringa. Eventualmente, atuava no meio-campo; muitas vezes, jogava de zagueiro. O posicionamento excelente me fazia esquecer que não tinha altura para defensor. Compensava também em mobilidade, principalmente na cobertura.
No entanto, o melhor Pica-Pau (ou a continuidade dele) estava fora da quadra. Era um sujeito simples, que nos faz questionar o porquê de gente boníssima ter que nos deixar antes da hora. E qual seria a hora? Não me interessa a resposta. Não deveria ser hoje. Ele fará falta pela correção das atitudes, pela conversa de raros julgamentos, pelo tratamento educado com todos.
Pica-Pau esteve em casa por três vezes, a última no início deste ano. Na última delas, conversamos por quatro horas, tentando instalar um painel para TV na sala. O futebol, curiosamente, mal apareceu na pauta. Falamos de marcenaria – outra polivalência dele – e seus sonhos de ateliê e ensino da profissão. Ele me contou sobre o futuro profissional e como se desenhava a vida naquele momento. Sabe aquele sujeito que sempre tem uma boa história e nunca se vangloria delas ou de seus feitos?
Depois, voltamos a falar quando ele estava internado, pouco antes da pandemia. Trocamos algumas mensagens e ele sempre me parabenizava pelos textos que escrevia e publicava. Nunca reclamou da própria saúde, da doença. Sempre cordial e sereno nas conversas.
Hoje, o futebol de quinta perdeu de goleada. Derrota de desnortear. Mal consegui falar com dois amigos da mesma turma. Não havia o que dizer naquele momento. Este texto, acho que me desmente. Há muito a falar sobre o Pica-Pau. Eu é que não dou conta.
Marcio, meu amigo, até o segundo tempo! Agora, é só um intervalo. E obrigado pela amizade.
Comentários
Postar um comentário