As perdas
Marcus Vinicius Batista
Entrei no café do Memorial Necrópole Ecumênica e dei de cara com um amigo, o Eduardo Brandão. Percebemos que estávamos lá por causa da mesma pessoa. Durante uns 20 minutos, colocamos a conversa em dia sobre futebol, trabalho, família e como levamos a quarentena. No final da conversa, Brandão me disse: “Precisamos parar de nos encontrar em velórios. É a segunda vez nesta pandemia.”As duas frases ficaram comigo ao longo da semana. Viraram perguntas. Por que estamos tão anestesiados que não dimensionamos nossas perdas a longo prazo? Por que cedemos ao prosseguimento da vida – que deve acontecer -, flertando com o piloto automático, em vez de nos recusarmos a estender a mão para a produtividade (a correria) sem intervalos?
A pandemia não levou meus dois amigos, Henrique e Márcio, de forma direta. Eles não morreram de Covid-19, mas isso me soa secundário numa fase da história marcada por perdas.
Vivemos um luto contínuo, não somente por aqueles que faleceram. Luto é um sentimento derivado de uma perda significativa, substancial, profunda. Uma dor que cada um sente à sua maneira e ao seu tempo. Um rasgo na pele cuja cicatrização pode ser demorada, um processo sem cura definitiva, apenas adormecimento e despertar, avanços e retrocessos.
O luto deveria ser vivido sem culpa, com a consciência de que a despedida foi honesta, leal e amorosa. Não se trata de acerto de contas – pode vir a ocorrer, costuma ser saudável -, mas de compreender que a perda de alguém é somente um hiato. A prioridade é o conforto de quem muda de existência, não o meu sofrimento, também necessário, porém coadjuvante.
Nesta pandemia, muitas biografias foram interrompidas por irresponsabilidade alheia, por falta de planejamento público, por política rasteira, por pressões econômicas perversas. Muitos se encontram em luto porque perderam seus empregos ou sua única fonte de renda. Muitos enlutados sobrevivem para superar a perda de relacionamentos das mais variadas ordens e dinâmicas.
A pandemia nos ceifou histórias, futuros, encontros, reencontros, conciliações e até conflitos que, muitas vezes, nos deixam acesos e pulsantes. As perdas nesta fase estão além dos números. Confesso que parei de acompanhar as estatísticas faz tempo. Admito também que não tenho mais estômago para lidar com quem exala negacionismo ou quer discutir teorias conspiratórias chinesas ou alienígenas.
Prefiro pensar nas pessoas. Lembrar de quem se foi durante este ano para se esquecer. Prefiro conviver com a lembrança carinhosa que a saudade pode nos proporcionar. A saudade estampada no amigo que encontro num café, onde podemos lembrar com alegria tanto do Henrique, que tanto no ensinou, como do Márcio, com sua simpatia nos campos de futebol ou nas visitas aqui em casa. Tudo com a consciência de que escrevi muito pouco sobre o que eles representam, assim como muita gente que me recuso a incluir nas estatísticas. Para mim, elas estão vivas nas narrativas de cada familiar, amigo, parente, colega, conhecido que desfia uma experiência, um causo, uma história.
Henrique Pereira da Cunha e Márcio Andrade, vocês nunca se viram, pelo menos neste mundo, mas saibam que são muito parecidos e queridos. Sujeitos destinados à simplicidade, à amizade gratuita, à polidez digna dos lordes, à memória viva de muitos que sentem a falta do bom papo e das lições nas entrelinhas. Este texto é para vocês!
Obs.: Texto publicado, originalmente, na AT Revista, em 25 de outubro de 2020.
Lembrei de quatro casamentos e um funeral :)
ResponderExcluir