Aprender a morrer (Crônicas de uma epidemia # 40)


Marcus Vinicius Batista


Eu morri há duas semanas. Não foi de morte morrida nem de morte matada. Também não houve velório, enterro, chororô ou comemoração. Apenas eu e ele sabíamos que, naquela noite, eu morreria. Ele sabia. Eu descobriria. Ele não me disse nem rascunhou previsão. Não se rascunha profecia quando se sabe o óbvio. Se o procurei, eu deveria saber que morreria.

O médico da mata se esconde num corpo até certo ponto jovem, esbelto, em harmonia com o conhecimento e com o papel que exerce. Mas é um corpo pesado, preparado para carregar o saber ancestral que vai propiciar ao outro (eu). Para o médico, ser o que é significa respeitar quem o ensinou, compreender quem aprenderia, conduzir quem precisava morrer.

Ele me encontrou no pátio de mínima luz. Depois eu percebi: para alcançar a luminosidade, só a escuridão como sala de aula, de cheiros verdadeiros, onde você não tem nome, passado, histórico, status, conta bancária, cargo ou confortos de consumo. A morte, para acontecer, tinha que se sentar ao lado da minha essência, longe do que tinha ou do que me tirava o foco feito lâmpada amarela da selva urbanóide.

Ninguém quer morrer. Quando afundados em nossos fantasmas, pleiteamos por outra vida, por outros caminhos. Mas tentamos agarrar os atalhos, queimar etapas para não encarar os espelhos internos.

Resisti ao primeiro tratamento. O médico da mata observou a malandragem infantil daquele que não se mancou que séculos de conhecimento permitem prever que a primeira tentativa é isso: uma tentativa. Bobos os pacientes que não enxergam que mal se molham os pés no início da travessia, de que todos os trajetos – inclusive o morrer – são processos, com avanços, retrocessos, intervalos e retomadas.

O médico da mata cantou e repetiu: “Espere, ela virá! Feche os olhos, pois a jornada se inicia pela janela da alma, onde você verá o que – de vistas arregaladas – nunca conseguiu ver.” Mudar é matar uma parte. Mudar arde, redesenha as percepções, implica em limpeza de dentro para fora. Uma lógica tão simples. Quem, afinal, limpa a casa começando pela calçada?

Não há milagre na cura. A solução é circunstancial. Somos escravos do definitivo enquanto fórmula de alívio instantâneo, como se o médico da mata estivesse sentado sobre pílulas da felicidade, feito gurus das redes sociais. Aqueles que celebram e se apropriam das vitórias, os mesmos que abandonam o derrotado quando perder é um dogma.

O médico da mata nunca me obrigou a morrer. Nunca discutimos tal hipótese. Ele foi franco de que suas práticas dependiam de mim, que seus remédios eram opcionais, sem dosagem e horários pré-determinados. Morrer não significava adormecer. Pelo contrário, morrer significava estar de mente aberta, atento ao novo mundo que brotaria do meu corpo (e do espírito) em reconstrução.

Eu morri naquela madrugada. Morri sob a luz fraca da fogueira que não se atreveu a me consumir. Era a fogueira que aquecia os descalços, que os guiava para as seis horas da manhã. Pernas precisaram bambear, precisei de uma mão amiga para andar, pés ficaram pesados feito criança com sapatos de palhaço.

A morte é um dia que vale a pena viver, título de nome de livro. Naquela noite, morri. E me mantive à luz. O médico da mata não me curou. Ele me encaminhou para o degrau acima. Nele, dei mais um passo para a transformação. O topo da escada segue incerto, assim como o amor se fez latente numa madrugada, há duas semanas. O resultado desta equação: perdão a si próprio e paz!

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 25 de abril de 2021.

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