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Os jovens não deveriam morrer (Crônicas de uma epidemia # 53)

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Marcus Vinicius Batista Priscila tinha 35 anos. Sonhos demais, ilusões para cultivar e depois desfazer, amores por viver e talvez descartar, amizades por renovar e construir, vida profissional para carregar e pelejar, problemas para lidar e protelar...Um horizonte a seguir feito todas as pessoas em condições equilibradas de temperatura, pressão e meio ambiente. Como todo jovem, ela se foi antes da hora, na opinião de qualquer pessoa de bom senso. Como cidadã, ela não deveria morrer por causa de um vírus que aglomera gente na porta do lugar onde se chega depois de morrer, independentemente da fé. A casa tá cheia. Gente que nega, gente que luta, gente que cuida de gente, gente que se descuida, gente que causa surpresa porque deveria estar por perto, gente que não surpreende na estupidez humana. A morte não é um destino dos velhos. Longe disso. A morte é para todos nós, precisamos vê-la, conversar sobre ela, senti-la ainda que seja pela dor. A questão é

Aprender a morrer (Crônicas de uma epidemia # 40)

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Marcus Vinicius Batista Eu morri há duas semanas. Não foi de morte morrida nem de morte matada. Também não houve velório, enterro, chororô ou comemoração. Apenas eu e ele sabíamos que, naquela noite, eu morreria. Ele sabia. Eu descobriria. Ele não me disse nem rascunhou previsão. Não se rascunha profecia quando se sabe o óbvio. Se o procurei, eu deveria saber que morreria. O médico da mata se esconde num corpo até certo ponto jovem, esbelto, em harmonia com o conhecimento e com o papel que exerce. Mas é um corpo pesado, preparado para carregar o saber ancestral que vai propiciar ao outro (eu). Para o médico, ser o que é significa respeitar quem o ensinou, compreender quem aprenderia, conduzir quem precisava morrer. Ele me encontrou no pátio de mínima luz. Depois eu percebi: para alcançar a luminosidade, só a escuridão como sala de aula, de cheiros verdadeiros, onde você não tem nome, passado, histórico, status, conta bancária, cargo ou confortos de c

Carta ao Thales

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Marcus Vinicius Batista Pensei por dois dias se deveria te escrever. Decidi preparar essa carta porque percebi que me identifico com você. Percebi pela primeira vez na noite de domingo, quando me perguntei como você estaria naquele momento. Como você ficaria pelos dias seguintes? Como seria tocar a vida com dois filhos pequenos para orientar, para cuidar, para explicar a ausência do Paulo? Ainda que também tenha dois filhos e já tenha vivido lutos na vida, jamais passou pela minha cabeça dizer qualquer coisa sobre o que você deve fazer. Não existem saídas coletivas, soluções mágicas, fórmulas libertadoras. Nenhum remédio com doses programadas, exceto o amor. E este sentimento, acredito, ocupou você, construído de maneira única com o Paulo, cultivado de maneira única com seus filhos e pessoas próximas. Único, intransferível, imensurável. Identificar-me com você não me dá o direito de imaginar o que sente. Muito menos comparar com quaisquer outras situ

As perdas

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  Marcus Vinicius Batista Entrei no café do Memorial Necrópole Ecumênica e dei de cara com um amigo, o Eduardo Brandão. Percebemos que estávamos lá por causa da mesma pessoa. Durante uns 20 minutos, colocamos a conversa em dia sobre futebol, trabalho, família e como levamos a quarentena. No final da conversa, Brandão me disse: “Precisamos parar de nos encontrar em velórios. É a segunda vez nesta pandemia.” As duas frases ficaram comigo ao longo da semana. Viraram perguntas. Por que estamos tão anestesiados que não dimensionamos nossas perdas a longo prazo? Por que cedemos ao prosseguimento da vida – que deve acontecer -, flertando com o piloto automático, em vez de nos recusarmos a estender a mão para a produtividade (a correria) sem intervalos? A pandemia não levou meus dois amigos, Henrique e Márcio, de forma direta. Eles não morreram de Covid-19, mas isso me soa secundário numa fase da história marcada por perdas. Vivemos um luto contínuo, não somente por aqu

O professor foi viajar

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  Henrique e Myrian - 41 anos de casamento Marcus Vinicius Batista Nunca vi o professor deixar de sorrir. Assim foi no último sábado, quando pude visita-lo antes da viagem. Ele não me esperava em seu quarto. Ficou genuinamente surpreso quando me viu. Sorriu, abriu os braços e me cumprimentou como se eu fosse a atração do dia. Ele tinha essa (entre outras habilidades): tornava seu interlocutor o centro das atenções, mesmo quando todos na sala tinham consciência de que o protagonista era o próprio professor. Nunca o chamei diretamente de professor. Pensava nele deste modo. Era a forma de respeitá-lo, concedendo a ele – no meu mundo - o título de fato e de direito, não por diploma ou outras honrarias protocolares. Ele não era um daqueles professores autoritários ou espalhafatosos ou autoritários e espalhafatosos. Henrique era um professor de linhagem oriental. Quase um clichê de filmes de artes marciais. Um Sr. Myagi. Só não o era porque, por exemplo, não falava por metáforas,

Até o segundo tempo, Pica-Pau

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Marcus Vinicius Batista O que dizer quando você descobre, feito soco no queixo, que um amigo seu morreu? O que pensar sobre a surpresa, a mensagem que rasga qualquer dia, qualquer semana, senão chorar como criança? O que escrever quando se sabe que quaisquer palavras serão insuficientes para homenagear ou dar significado para uma relação de amizade que só o futebol consegue construir? Marcio Andrade, o Pica-Pau, como era conhecido desde moleque, foi um amigo que o futebol me presenteou depois de velho. Diria veterano, no linguajar dos campos de society, mais adequado em tamanho e velocidade para nossas idades. Ficamos amigos com quase 40 anos. Antes, muito tempo antes, fomos adversários. E eu o temia. Temia pelos mesmos motivos até a última partida que jogamos juntos. E me sentia seguro em jogar com ele pelas mesmas razões e qualidades. Pica-Pau foi um dos sujeitos mais respeitosos que o futebol me permitiu conhecer. Raras vezes o vi nervoso a ponto de erguer a

Mariângela gostava de conversar

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Marcus Vinicius Batista Quando ela me chamou pela primeira vez, eu achei que não era comigo. Começava a subir a rampa do supermercado, que atravessava cinco vezes por semana, no caminho mais curto para casa. Era hora do almoço, tinha deixado meu filho na escola e estava com pressa, repassando compromissos na cabeça. Mariângela foi coerente. Persistente como ela mesma. Insistiu. Falou mais alto. Repetiu meu nome. Logo, passou a balançar o braço direito e gritar: “Menino! Menino! Menino!” Parei, a reconheci e esperei que ela descesse a rampa com quatro, cinco sacolas de supermercado. Foi no final do ano passado, provavelmente novembro. Foi a última vez que nos encontramos. Mariângela Duarte era assim. Objetiva, determinada, conversadeira, tinha que dar seu recado. Logo que nos cumprimentamos, ela me surpreendeu. Perguntou do meu último livro, “O Lobo, o Urso e a Cura”. Não imaginava que soubesse dele. Não só sabia, como conhecia detalhes. Queria